sábado, 8 de agosto de 2009

Amorosos, guerreiros, santos e loucos: pais.


Amanhã é o dia dos pais. Este é meu pai.

Estou sem pai e sempre reflito sobre essa figura simbólica em que vários homens se transformam.

Qualquer pessoa sabe a força dessa palavra, sejam aqueles que tem pai, ou aqueles que nunca tiveram. Daí a força se desdobra.

Alguns homens anseiam pelo momento de serem pais e se saem muito bem no desempenho dessa função. Outros, nunca esperaram chegar esse dia e foram forçados a assumirem um papel social ao qual não estavam preparados ainda. Alguns outros nem sabem que são pais e não tiveram respeitado seu direito em sabê-lo.

Eu tive dois pais em um. Talvez até houvesse uma variação desses dois pais entre eles, mas isso fica difícil identificar.

Um pai era sonhador e sensível. Levava a gente pra acampar no quintal de casa e mostrava São Jorge na lua matando o dragão. Contava estórias e mais estórias. Cantava umas músicas estranhas em espanhol e italiano, que descobri depois quais eram . Contava causos da infância dele, sempre envolvendo alguma expressãozinha em espanhol. Levava a gente pra ver um ninho de beijaflor que ele havia descoberto. Ensinou a tocar violão, a ler partitura musical, a cantar e fazer duetos. Ele aprendeu isso sozinho. Era um pai, que como filho, chorava ao lembrar de sua mãe e pai que moravam longe.

O outro pai era duro e cruel. Era severo e intolerante. Se algo acontecesse fora de sua aprovação, era surra na certa. Surra com chinelo, varinha, cinto, o que fosse. Era calado, tinha dores de cabeça fortes e ficava trancado no quarto.

Eu nunca sabia quando um pai sairia e daria lugar ao outro. Acho que nem ele sabia.

Com 17 anos eu queria por tudo na vida sair de casa e me livrar das proibições exegeradas desse pai severo. Ele dizia " estamos no mundo, sem sermos do mundo!" e eu ficava doida, porque o que eu mais queria era ser normal, como todo mundo e estar no mundo, sim. Claro que o que ele dizia era que éramos diferentes, por sermos epiritualistas e não "mundanos", mas eu não entendia isso na época.

Despois que saí de casa era meu pai quem me ligava para saber de mim, da minha vida e de minha nova família. Era sempre dele a iniciativa em ligar, apesar de minha mãe proibí-lo de usar o telefone e gastar dinheiro. Ele telefonava assim mesmo, com a voz embargada, com sonzinho do choro engolido. Choro de preocupação e saudades misturadas. Era o pai doce.

Ele me disse coisas duras, ásperas, criticando minhas escolhas, assim como me disse coisas calientitas e amorosas, cheias de preocupação e carinho. Com o tempo ele foi mudando, assim como eu mudei e as críticas cederam para uma relação mais carinhosa e de saudades, já que eu, em 21 anos, havia voltado a morar perto dele por apenas 4 anos. E cuidei dele sempre que precisou.

Meus dois pais foram se calando com o tempo.

Com 60 anos ele adoeceu e só então soubemos que a vida inteira ele sofrera de uma doença psicoafetiva que fizera todos nós sofrermos com ela. Ora ele estava em delírios e era divino, doce e amoroso. Ora ele estava em depressão profunda e era tirano. Daí ele ter sido dois pais: o distúrbio bipolar havia feito ele se tornar dois em um.

O tratamento durou a vida dele. Com o tempo foi deixando de ser quem era. Nos últimos anos já não cantava tão frequente quanto antes e nem tocava mais a flautinha doce que eu comprei pra estudar na escola e havia abandonado meses depois. A flautinha havia ficado sob a custódia dele desde então.

Aos 72 anos ele escreveu um texto que seria um livro e atestou que não chegaria aos 73 anos. Nessa fase só ouvíamos o som de seu chinelo sendo arrastado pela casa, pra lá e pra cá. Ele emudeceu, deixou de ir à igreja como sempre fizera e brigara tanto para que fizéssemos. Dizia que a igreja havia se desvirtuado e virado mercado. E ele estava certo.

Aquele homem ansioso que sempre lutara contra a incerteza da vida e a insegurança de não ter o que dar de comer aos filhos no mês seguinte, estava entregando os pontos devagar.

Foi com ele que eu aprendi a dizer "meu amor" para meus filhos. Aprendi a dizer "meu anjo" e a ser ansiosa se eles saem e se demoram.

Foi ele quem me ensinou quão preciosos são os filhos e o quanto a gente pode sofrer por eles e ainda assim aguentar o tranco. Amá-los e deixá-los ir, apesar da dor que isso pode causar. E mesmo longe, deixá-los sempre saber que os amamos.

Incondicionalmente.

Meu pai que eram dois, me ensinou a ser sensível e observadora. Me deixou como legado a inteligência, perspicácia e iniciativa. Foi santo e louco e me orgulho dele integralmente.

Exatamente um mês antes de completar 73 anos, como ele havia predito, ele sai do coma induzido para o tratamento de leucemia e foi para outra esfera, outra dimensão. Esta semana, no dia 03 de agosto, contei os 4 anos em que estou sem ele.

Os pais talvez não saibam a força que tem. Em suas lutas diárias talvez não se apercebam que é em suas fraquezas que são fortes e que se tornam tão presentes dentro de nós, filhos.

Ser pai é se tornar tão grande somente por ter recebido esse nome.

E nossa função como filhos é torná-los heróis imortais.

Salve os pais amorosos, guerreiros, santos e loucos do mundo!

Um comentário:

Michele Matos disse...

Que lindo!
Vai precisar de muito esforço da minha parte para um dia eu conseguir enxergar um Herói na figura do meu pai...